Recordar é viver: Atrás da guitarra baiana só não vai quem já morreu
Por Chico Castro Jr. - Revista Bequadro (ano indisponível)
Instrumento símbolo do Carnaval de outrora, a guitarra baiana volta à cena com nova geração de músicos e acento pop
Houve um tempo em que o Carnaval da Bahia era movido ao som faiscante de uma guitarra em miniatura. Um instrumento invocado, com escala de violino e desenvolvido por Dodô e Osmar nos anos 40, quando era chamado de pau elétrico. Ela era nada mais que um cepo de madeira maciça eletrificado. Foi o passar dos anos e a excelência genial de Armandinho, filho de Osmar Macêdo, que transformaram a guitarra baiana num dos ícones do Carnaval. Não era para menos, Armandinho está para sua guitarrinha como Jimi Hendrix está para a guitarra convencional.
Quem viveu, porém, o Carnaval baiano nestas últimas duas décadas sabe que a guitarra baiana perdeu seu posto de primeira-dama de Momo para a percussão marcada e de influência afro. Mas, como tudo tem seu movimento natural, ela está de volta, reinterpretada e oxigenada por uma nova geração de músicos, muitos com origem no rock, que veneram a criação de Armandinho, Dodô e Osmar como o principal ícone do Carnaval, depois do trio elétrico, claro, que, aliás, só foi inventado para que a guitarrinha fosse ouvida pela multidão. Destituída de sua posição como música carnavalesca amplamente comercial, do tipo que toca nas rádios, o som da guitarra baiana agora se faz ouvir através das mãos de músicos oriundos do cenário alternativo, off-axé music, como os guitarristas Morotó Slim (Retrofoguetes), Júlio Caldas (do cenário instrumental), Robertinho Barreto (BaianaSystem) e Fred Menendez (também da cena instrumental). São eles que vêm, sistematicamente, trabalhando com a guitarrinha em suas bandas, shows e gravações, divulgando a importância do instrumento genuinamente baiano.
Com sua banda Retrofoguetes, formada também por Rex (bateria) e CH (baixo), Morotó e os companheiros vêm promovendo os bailes pré-carnavalescos Retrofolia. Sempre concorrido e com muitos convidados, é um dos eventos mais esperados do ano por um público bastante eclético, que abrange desde saudosistas até a plateia originalmente rock’n’roll.
Retrofolia - É a Massa - Morotó Slim (Retrofoguetes)
Já Júlio Caldas, sobrinho de Luiz Caldas, promove dois eventos periódicos: o Circuito da Guitarra Baiana e a Mostra da Guitarra Baiana e do Bandolim. Ambos também muito bem cotados, porém dirigidos ao público mais tradicional. Fred Menendez realiza, também no período do Verão, uma série de shows gratuitos na Península de Itapagipe, Cidade Baixa, onde toca repertório de chorinhos e standards de música popular.
Trio de Guitarra Baiana - IV - Fredinho - Carnaval 2015
Fred Menendez com seu Guiban
Robertinho Barreto, com sua BaianaSystem (acesse uma matéria no portal sobre a banda), é, de longe, o artista de perfil mais experimental de todos entre os que são ligados ao instrumento. Com álbum elogiado pela crítica e shows sempre lotados, sua abordagem mistura o som tradicional da guitarrinha com influências de dub jamaicano, guitarrada paraense, high life africano, chula do Recôncavo baiano e música angolana. “Acho que esse novo olhar é uma grande possibilidade para a guitarrinha ser vista realmente como o instrumento que é, e com isso ela tende a ficar cada vez mais incorporada à nossa cultura”, opina.
Morotó, igualmente entusiasta de primeira hora, fica feliz de fazer parte dessa nova cena: “Eu vejo que há um interesse, as pessoas querem realmente que a coisa volte. Mas não como uma coisa nostálgica, que vive do passado. Vamos adiante. Hoje, a maioria dos meus alunos é de guitarra baiana. Mincho Garramone, um guitarrista argentino, tocou a guitarrinha com Cindy Lauper outro dia. Chico César também usa na banda dele. Aqui também vai aos poucos, mais vai; a moçada mais nova está interessada”, entusiasma-se. Ciente de que tocar guitarra baiana é seguir os passos de Armandinho Macêdo, Morotó, como todos que vieram depois, presta tributo ao mestre: “Tudo o que você tenta fazer para chegar perto de Armandinho é lucro. É como se você morasse em Santos nos anos 1950, visse Pelé jogando e se espelhasse nele”. Até porque a guitarra baiana não permite enrolação, segundo o músico. “É um instrumento que não permite fazer coisa ruim. Ou você faz bem ou não faz. A guitarra baiana é muito na cara”, completa.
No entanto, ele acha que a Bahia ainda deve muito ao instrumento e a seus criadores: “Pra mim, trio elétrico era guitarra baiana. Teve um Carnaval desses que o trio de Armandinho, Dodô e Osmar distribuiu réplicas da guitarrinha em papelão para o público. Ninguém jogou fora. Aqui todo mundo sabe o que é isso. É uma coisa bem nossa, genuína, como o acarajé. Fizemos o Retrofolia para pessoas que gostavam do Carnaval assim, mas não tinham oportunidade. Foi só mostrar como era e, num instante, começaram a me ligar. Mas a Bahia ainda parece ter vergonha de mostrar suas coisas boas”, analisa. As palavras de Morotó encontram eco na visão de Júlio Caldas, outra fera recente do instrumento, que aprofunda: “O público do Carnaval não gosta mais da guitarra baiana. Já vi em shows de axé. O público não aceita mais a guitarra baiana no trio elétrico. Daí a importância de um projeto como o Circuito da Guitarra Baiana, que ocorre ao longo do ano. Porque a guitarra baiana tocada apenas na época do Carnaval a mantém atrelada a isso. E minha intenção é desligá-la dessa imagem, deixar ela independente disso. Eu mesmo toco chorinho com ela”, declara. Júlio só tem medo de uma coisa: que a guitarra baiana perca o contato com sua base: o som de Armandinho. “Acho que tem que olhar para novos horizontes, mas sem perder o sotaque, sabe? Eu vejo que alguns trabalhos caminham para isso, estão perdendo o sotaque. É um lance delicado, até porque tem trabalhos dando certo nesse sentido, mas que fogem desse sotaque original”, observa. Cioso da manutenção desse ‘sotaque’ e do legado de sua família, Aroldo Macêdo, irmão de Armandinho, sempre suou dobrado ao duelar com o irmão no trio elétrico. Mas, hoje, o suor que mais lhe dá prazer é o que ele verte para ensinar aos 60 alunos, entre 9 e 22 anos, que mantém na escolinha de guitarra baiana que funciona no bairro do Canela. “Fico muito feliz com essa galera toda que está aí hoje, até porque a guitarrinha está aparecendo porque nós, junto com nosso luthier Elifas Santana, resolvemos fabricar os instrumentos também para os amigos. Quantos anos ficamos só a gente tocando? Aí começamos a produzir e passar instrumentos para Morotó, Robertinho Barreto, Fred Menendez, Julinho Caldas. Já fabricamos mais de mil guitarras baianas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Outros luthiers foram aprendendo também, e agora já tem uns 20 luthiers fazendo guitarra baiana Brasil afora”, conta Aroldo.
Só não diga ao homem que a nova geração está ‘modernizando’ alguma coisa. “Essa é a nova geração. Mas nós não paramos de tocar, eles aprenderam através da gente, conhecem nosso repertório e isso é muito legal. São todos nossos amigos e amanhã vai ser o mundo que vai ouvir esse formato (de guitarra). Armandinho corre o mundo inteiro com a guitarra baiana e ainda faz o som mais moderno que existe. Ele é a modernidade da guitarra baiana. Ainda vai levar um tempo para mostrar alguma coisa mais pessoal. Por enquanto, essa é a escola: Armandinho, Dodô e Osmar”, demarca Aroldo.
Do alto de sua posição de Jimi Hendrix da parada, Armandinho Macêdo contemporiza: “A guitarra baiana é um instrumento nosso, que eu batizei de guitarra baiana. No início, na época de Dodô e Osmar, ninguém chamava de guitarra. O pessoal chamava de pau elétrico, porque era um instrumento maciço, só o braço, e o pessoal botou o nome meio de sacanagem”, relata. Foi no quarto disco do Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar (Pombo Correio, 1977), que ele teve a ideia de batizar o instrumento. O nome de guitarra baiana pegou na hora. “Todo mundo passou a chamar de guitarra baiana esse misto de cavaquinho e bandolim, que gerou um estilo musical: o estilo trieletrizado, com personalidade própria”, relembra Armandinho.
De um tempo para cá, minha maior felicidade é ver gente nova tocando a guitarrinha. Hoje você vê a guitarra baiana aderindo a novos estilos, como Roberto Barreto, que toca de mão (sem palheta); o Fred Menendez, que acabou sendo mais roqueiro; Morotó, que pegou seu estilo bem em cima da escola Dodô e Osmar, mas que também é mais envenenado no rock. Isso é muito bom, pois um movimento realmente só começa a expandir a partir do momento que tem adeptos, seguidores. Isso é de uma importância fundamental”, conclui, sábio, Armandinho.
Fonte: http://www.revistabequadro.com/materias/atras-da-guitarra-baiana-so-nao-vai-quem-ja-morreu/